Pensei em suprimir este texto, que seria um capítulo. Principalmente porque gostaria de me colocar além dos fatos. Gostaria que todas as páginas fossem falas de Leila, Leila no papel, na memória, nas ações e na narração. Mas, ao reler tais páginas, percebi, tempos depois, que as explicações que dei anteriormente poderiam, ao invés de explicar, nublar a mente daqueles que ousaram virar a página. Pois bem, como é impossível ser narrador absoluto, dado meu envolvimento com a produção desta obra, resolvi deixar claro onde é que me insiro.
Era tarde da noite, estava preparando-me para fazer meus exercícios diários, quando o interfone do prédio tocou.
—Sr. Aedo, dona Leila D’Paula está perguntando se pode encontrá-lo.
—Como assim, ela telefonou pra recepção?
— Não senhor, ela está aqui.
Leila D’Paula entrou em meu apartamento assim que troquei a roupa. Uma mulher imponente, não apenas pelo nome que carrega, pelo que significa, e pelo poder que tem; imponente por natureza. Uma dama, com seus aproximados 45 anos, que, notei, ainda mantinham a graça e leveza que transparece em suas fotos públicas de mais nova, mas com uma carga de autoridade sublinhada. Comprimentou-me com um sorriso encantador, fluido, morno. E por isso, percebo agora, que desde o primeiro contato mais próximo com essa mulher meu subconsciente começou a entender sua fama. Ela era mesmo a Leila temida e respeitada por ser ambígua, terrível e irresistível, ao mesmo tempo.
— Olá! Creio que o surpreendi!
— Um tanto... queira sentar, por favor. Desculpe-me a demora, mas não estava preparado...
— Eu sei. Me esqueço sempre que a única a não ser regida pelo relógio convencional nesse país sou eu!
— Mas é um privilégio, claro, que me procure.
— Ora, já tinha mencionado meu interesse de que fosse meu assessor particular.
— Assessor?
— Sim, de imprensa.
— Me desculpe, mas tinha entendido que gostaria que eu escrevesse seu livro...
— Claro, exato! Mas quero que cuide de todos os pormenores. Inclusive entrevistas e discursos. Passei anos escrevendo a vida de outros, me cansei de fazer isso. Nada mais justo que, a essa altura, possa ter meu próprio assessor, não acha?
— Claro, mas... por que eu?
— Hahaha... sim, a pergunta de sempre... por que não? E você escreve muito bem, por sinal! Sua primeira matéria sobre mim foi muito bem escrita e bem articulada.
— Obrigado!
— Fique tranquilo porque pretendo pagar o salário de assessor, não o de escritor.
— Não é questão disso, nem sei quanto ganha um assessor!
— Digamos que pagarei o salário que costumava receber, com adaptações de moeda e correções, claro!
Fiquei sem fala. Era bom demais pra ser verdade! Receber o que Leila recebia para escrever? Ela foi a assessora mais bem paga da história! Mas naquela altura, eu não sabia ainda o por quê.
— Senhora, eu...
— Não, por favor, senhora não! Me chamam assim desde quando nem tinha idade para receber tal tratamento. Leila está ótimo!
— Claro... Leila... não estou certo se valho tanto!
— Bom... eu tenho certeza que não! Por isso mesmo! Cansei-me de classificar as pessoas pelo nome. Pago o quanto quero e pronto. Aceita?
Tive exatos 7 segundos para pensar.
— Ótimo!
— Mas não respondi!
— Claro que sim! Eu leio silêncios, meu caro!
— E qual será exatamente a minha função?
— Comecemos pelo texto, que é o que vim fazer aqui.
— Agora?
— Certo, Aedo, para começarmos bem precisa saber que não tenho mais paciência para preliminares sociais. Você não tem nada a perder, e tenho certeza que ouvir confidências de Leila D’Paula em primeira mão é capaz de não apenas te interessar, como de te deixar acordado!
— Você é direta!
— Sim, aprendi a ser quando preciso. Vamos? Como quer fazer?
— Bom... preciso de uma tela e... fique à vontade, vou buscar uma bebida!
— Obrigada.
Virei as costas com um arrepio na espinha. Além do nervosismo de ter Leila em minha casa, ainda por cima naquele horário – ainda tenho certos pudores antiquados e não me acostumo à soberania feminina de nossa sociedade –, a forma como expunha minhas intenções, se não fosse um pouco letrado, me faria crer nos boatos de poderes sobrenaturais que a rondam. Não sabia exatamente o que conseguiria arrancar dela, mas para qualquer jornalista como eu era uma oportunidade imperdível.
— Aqui está. Pronta?
— Sempre!
Silêncio.
— Creio que não sabe por onde começar, pelo visto!
— Na verdade, não sei. Não tive tempo de elaborar uma entrevista...
— Ótimo, melhor ainda. Façamos do meu jeito. Meu livro será sobre as três noites que antecedem o atentado... me desculpe, falo como se soubesse do que digo!
— Como assim?
— Já vai entender. Vamos narrar desde a noite anterior ao ... digamos... atentado, até a morte de Carmen Diniz e o voto unânime do plano de governo de Diego Adenoni.
— Certo... e por quê?
— Porque foi o tempo que precisei para estar pronta para eles.
— “Estar pronta para eles”? Pensei que escreveria sua biografia!
— Pra quê? O que interessa onde nasci, o que gostava de comer, minhas loucuras de adolescência... ora essa, fui uma garota normal... dentro do possível...
Terminou a frase com um sorriso, de quem diz muito mais do que estava dizendo.
— Então começamos na noite anterior ao discurso...
— Isso.
Por duas horas, Leila descreveu os detalhes daquelas noites, enquanto eu dedilhava o mais veloz que podia. A certa altura, parou.
— Posso ler?
— São anotações apenas, preciso melhorar.
Estendeu a mão num gesto mudo, eu obedeci automaticamente, sem contestações ou perguntas. Era a história de Leila D’Paula por Leila... não ousei falar.
— Bom, está bom se for pra fazer uma enciclopédia didática. Olha só, quem diria... – me entregou o aparelho digital – mas não quero assim, me desculpe.
— Como assim?
— Já li seus textos. Não quero uma matéria jornalística. Quero que escreva o que digo. Quero, apenas, que me escreva.
— Desculpe... não consigo entender!
— Aedo, transforme em palavras escritas o que digo, como se fosse eu mesma que escrevesse. Como se me lessem de dentro pra fora. Vou contar tudo, e entenderá. Será capaz de ver os eventos com meus olhos. É esse olhar que quero que escreva. Por que só esse olhar explica tudo!
— Certo... vou tentar. Então continue. Depois reescrevo pra você ver. Vou, por ora, apenas tomar nota.
— Não precisa. Eu conto uma vez, você apenas ouve. Depois voltamos, e conto de novo, e você escreve em meu lugar. Assim não será novidade para você, como não é para mim.
Leila tinha razão. Foi muito fácil perder as horas de sono daquela noite, varar o dia seguinte, e perder a outra noite, apenas para ouvi-la. Quando saiu, ao meio dia, para almoçar, tentei dormir. Mas Leila já estava tão impregnada em mim, que apenas cochilei o mínimo que meu corpo exigiu para continuar funcionando.
Três meses depois, 7 horas após enviar o arquivo para ela, recebi em minha casa um pacote. Nele estavam uma chave, com um jaguar prata encrustado em couro, e um bilhete que dizia: “Parabéns pelo texto, salvo trejeitos jornalísticos. Tudo bem. Não exigirei a maestria de um poeta, nem quero a arte de um historiador. Sua habilidade romanesca vale o preço. Cumpro o que prometi. O dinheiro está no banco. E repasso a você o que recebia quando era assessora. Bem vindo!”
As páginas a seguir foram as que enviei. Creio que fui aprovado, já que, hoje, sou o assessor mais bem pago da história.
Por Elisa Santoro
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